Rubem Alves
Jesus era sábio. Conhecia os segredos do coração humano. Psicanalista insuperável. Disse: “O homem bom tira coisas boas do seu tesouro. O homem mau tira coisas más do seu tesouro.“ Ou seja: a gente sempre encontra aquilo que está procurando. Isso se aplica à leitura que se faz das Sagradas Escrituras. Pessoas que estão cheias de medo, de sentimentos de vingança, de autoritarismo, encontrarão na Bíblia ameaças, castigos, infernos, um Deus cruel e vingativo: parecido com eles. Cada Deus é um retrato de quem acredita nele. É possível fazer uma psicanálise de uma pessoa analisando os seus pensamentos e sentimentos religiosos. Aqueles, entretanto, que estão cheios de sentimentos ternos e que, portanto, não são movidos pelo medo (“O amor lança fora o medo“, diz o apóstolo João) vão tirar daquele tesouro idéias de beleza, bondade e perdão. Seu Deus muito se parece com uma criança: não há vinganças, castigos ou inferno.
Digo isso a propósito do que as pessoas tiram das Escrituras Sagradas, quando pensam sobre o sexo. Veio-me à memória um texto, inspirado como todos os outros, em que se descreve os últimos momentos do rei Davi. Esse incidente, relatado nos primeiros versos do livro de Reis, e sobre o qual nunca ouvi sermão, conta que, sendo Davi já velho, todos os cobertores sendo inúteis para aquecê-lo, seus servos tiveram uma idéia terapêutica: “Procure-se para o senhor nosso rei uma jovem virgem que assista o rei e cuide dele: ela dormirá sobre o seu seio e o senhor nosso rei se aquecerá.“ Assim se fez. Mas foi inútil. Foi inútil que o rei dormisse ao lado da mais bela jovem do reino. Seu corpo, outrora corpo de homem viril – lembram-se de Betsebá? – permaneceu inerte. As esperanças de que ele fosse trazido de novo à vida pelas delícias do corpo de uma mulher não se realizaram. Ele não fez amor com ela. Que decepção! E morreu. O que esse texto sagrado diz é que havia a convicção, partilhada por todos, de que o amor sexual tem o poder de realizar o milagre de curar o corpo. O sexo aquece a vida fria. Sexo é remédio. Sexo é alegria. (Os que só tiram coisas más do tesouro concluíram, ao contrário, que sexo é veneno...)
Um dos meus textos favoritos se chama Desiderata. “Desiderata” quer dizer “conjunto de coisas que se desejam.“ (Vou pedir que o Caderno C abra um espaço para que ele seja publicado. Os que o lerem ficarão mais sábios, se souberem tirar coisas boas do tesouro...) Pois lá está dito, como um desejo: “Aceite com elegância o conselho dos anos, deixando graciosamente para trás os prazeres da juventude.“ O sentido não está explícito. O que eu tirei foi o seguinte: sendo os prazeres sexuais prazeres que o senso comum toma como prazeres da juventude, é preciso que os velhos aceitem com elegância as limitações da velhice, para não se tornarem ridículos: na velhice os prazeres do sexo vão também envelhecendo. Que ridículo Davi, indiferente, nos braços de uma linda jovem...
De fato, os prazeres da velhice não são iguais aos prazeres da juventude. Escrevi, faz muito tempo, sobre um casal de velhos que havia esperado mais de 50 anos para se casar. Morta a mulher do homem, morto o marido da mulher, os viúvos se encontraram para viver, no pouco tempo que lhes restava, o amor que ficara estrangulado. O velho, 79 anos, ressuscitou. A primeira mulher odiava violino. Ele amava violino. Resultado: para evitar ruídos vocais, ele deixou seu violino sobre o guarda-roupas, por mais de cinqüenta anos. Largado, as cordas do violino arrebentaram e arrebentadas ficaram... Ah! Que triste metáfora para a alma daquele homem, violino impedido de fazer música... Tomado pelo novo-velhíssimo amor, as cordas da alma se afinaram, o violinista ressuscitou do ataúde em que se encontrava preso, e tratou de reformar o violino que estava em cima do guarda-roupa. (Por vezes um violino é mais potente, sexualmente, que o corpo de uma donzela...) E o violino velho, esquecido dos prazeres da juventude, começou a tocar de novo. Essa metáfora me faz rir de alegria. Será isso? O corpo será um violino e a alma será uma música? Há, nos anais da psicanálise, o relato de uma pessoa que sonhava tocar violino em público – e o sentido do sonho era “masturbar-se em público“. Estou meio esquecido. Se não foi bem assim, peço que meus colegas me corrijam, para benefício dos leitores. O que nos interessa é essa deliciosa relação metafórica entre o instrumento musical e os instrumentos sexuais. Afinal de contas, fazer amor é sempre tocar um dueto. É preciso que os dois toquem para que o dueto soe como deve. E o amor foi enorme, no curto espaço em que durou. O violino não agüentou a intensidade da sonata: despedaçou-se antes que ela chegasse ao fim. O velhinho morreu aos 80 anos. Escrevi uma crônica sobre o acontecido. Pois algum tempo depois, recebo um telefonema de uma mulher desconhecida. Era ela! Por quarenta minutos me relatou com detalhes a alegria do amor que ela e o seu amado haviam vivido. E, ao término da conversa, me disse essa coisa linda que, toda vez que conto, choro de emoção: “Pois é, professor. Na idade da gente não se mexe muito (por favor! Observem o muito!) com as coisas do sexo. A gente vivia de ternura!“
De fato, sexo na velhice é muito diferente do sexo na adolescência. O adolescente, no seu estado normal, é um drogado. Não me entendam mal. Não estou dizendo que eles cheiram cocaína. Estou dizendo que eles são, repentinamente, invadidos por um vulcão de hormônios que não conheciam, demônios incontroláveis que deles se apossam, alojando-se preferencialmente em certas partes do corpo que se põem a mover dolorosamente, independentemente da sua vontade. Agostinho, no seu livro De Civitate Dei, já havia observado essa autonomia dos órgãos sexuais, que se movem sem permissão da razão, criando situações embaraçosíssimas, razão por que o Criador, compadecido da vergonha do homem, providenciou aventais que escondessem os seus genitais descontrolados. Vira um inferno. Não sei sobre as mulheres. Sei que, para os homens, o desejo sexual na adolescência é um sofrimento. Não dá sossego. O curioso é que ele irrompe gratuitamente, sem necessitar de nenhuma provocação. Não é preciso que o adolescente veja mulheres nuas, filmes pornô ou simplesmente tenha pensamentos libidinosos. O desejo sexual, na adolescência, independe de um objeto. É um desejo puro, bruto, irracional. Para quem não entende o que estou dizendo vou me valer de uma comparação: parece-se, em tudo, com o desejo de fazer xixi. A bexiga vai inchando, inchando, começa a doer, a dor vai crescendo, torna-se insuportável. Não há alternativa: é preciso esvaziar a bexiga. E aí é aquele prazer, aquela felicidade... O ato de fazer xixi, quando a bexiga está cheia, em tudo é comparável ao tesão e ao orgasmo, na adolescência. Creio, inclusive, que a análise que Freud faz do prazer sexual toma o ato de fazer xixi como modelo: o objetivo do prazer não é o prazer; é livrar-se da dor, voltar ao equilíbrio, à experiência budista de não desejar nada: nirvana...
Isso passa. Esse estado de perturbação hormonal é de curta duração. É como um cavalo selvagem, sem controle, desembestado, arrebentando cerca, pulando ribeirão, se atolando em charco... Depois o cavalo selvagem, poder puro, explosão atômica, destruição, vai ganhando forma. Da Vinci achava que os cavalos eram os animais mais belos, depois dos seres humanos... O poder selvagem ganha forma, descobre os limites. Poder bruto é feio. Como disse Nietzsche: “Quando o poder se torna gracioso, então a beleza acontece.” Surge então o sexo sob uma outra forma: a ternura. Aí os ditos órgãos descontrolados deixam de se movimentar por conta própria. Só se movimentam quando comovidos pela ternura da beleza... Sem a ternura da beleza eles ficam inertes. Os tolos acham que é impotência. Ou frigidez. É nada.
Depois a gente conversa mais...
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