Eu trabalhava em São José dos Campos, mas ia com frequência para São Paulo e ficava hospedado em hotéis na região da Paulista/Augusta. Já estava cansado de não dormir direito e ouvir aquele barulho matinal do trânsito caótico paulistano... e estou dizendo 20 anos atrás... imaginem hoje!
Há dois dias postei um texto de Rubem Alves - Violinos velhos Tocam Música - e o primeiro parágrafo me fez lembrar um pouco sobre essa surdez e cegueira seletivas. Rubem escreve:
"Jesus era sábio. Conhecia os segredos do coração humano. Psicanalista insuperável. Disse: “O homem bom tira coisas boas do seu tesouro. O homem mau tira coisas más do seu tesouro.“ Ou seja: a gente sempre encontra aquilo que está procurando. (...)"
Nessa época eu participava de um grupo espiritualista às segundas-feiras. Era uma reunião solta e envolvia também conversas descontraídas. Quando comentei sobre as minhas estadias em São Paulo, do barulho e do cinza intenso da paisagem de concreto, meu "guru" da época, amigo Jonathan - o qual agradeço muito até hoje pelos ensinamentos que me proporcionou - disse:
- Experimente abrir a janela e tente ouvir o canto dos pássaros e enxergar o verde, por mais sutil que seja entre os edifícios.
E perguntei a ele brincando:
- Puxa... com essa idade nunca foi pra São Paulo?Ele riu, mas insistiu:
- Experimente!Fui várias vezes depois desse dia para São Paulo e confesso que nunca me lembrei do que ele falou, mas um dia eu acordei e o diálogo que tivemos me veio à cabeça. Sirene do caminhão de resgate, ambulância, ônibus... realmente aquela manhã estava "caprichada"! Abri a janela e pensei "vamos então procurar o verde e tentar ouvir o canto dos pássaros".
A princípio me imaginei um louco tentando ouvir pássaros como no soneto Via Láctea de Olavo Bilac:
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e entender estrelas"
E não é que, no meu "pálido espanto", consegui ouvir pássaros em meio à multidão, ao trânsito e às sirenes? E ainda poupei trabalho, pois eles estavam cantando e piando numa raquítica, mas vitoriosa "Pau de Ferro" florida com seu tronco protegido por ripas de madeira. O mais interessante é que depois de localizados, consegui filtrar os sons e imagens que eu não desejava naquele meu cenário.
Um aprendizado que me serve até hoje nos momentos difíceis da vida. Moro em Campos do Jordão e quando cheguei ouvia pássaros mesmo sem querer e via o verde sem precisar buscar. Hoje, depois dez anos morando aqui, muitas vezes me pego ouvindo apenas o som dos caminhões, ônibus e automóveis que passam, misturados ao barulho às vezes ensurdecedor das preocupações e tristezas. É quando eu me lembro do amigo-mestre Jonathan e imediatamente saio no terraço e me integro no mundo seletivo dos pássaros e do verde, me esquecendo de tudo!
Há uma grande diferença entre a cidade de São Paulo e Campos do Jordão, mas a surdez e a cegueira vêm de dentro de nós e nos acompanham em qualquer cidade do Planeta, esteja ela cercada de concreto ou de árvores.
“O homem bom tira coisas boas do seu tesouro.
O homem mau tira coisas más do seu tesouro.“
É uma história que vale também para pessoas! Devemos às vezes parar um pouco e sermos seletivos, ouvindo e vendo apenas o que existe nelas de belo. É uma forma de cultivar o verde e os pássaros da alma.
Abaixo, uma gravação simplezinha do som dos pássaros, hoje, ao nascer do sol em Campos.
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