domingo, 6 de novembro de 2011

Ora (direis) ouvir estrelas!

Uma vez escrevi num dos posts deste blog sobre uma surdez crônica que me afetou há uns 20 anos. Não foi uma doença propriamente auditiva, mas era a mente que me impedia de escutar coisas fabulosas. Aliás, muitas vezes essa surdez vinha acompanhada de cegueira.

Eu trabalhava em São José dos Campos, mas ia com frequência para São Paulo e ficava hospedado em hotéis na região da Paulista/Augusta. Já estava cansado de não dormir direito e ouvir aquele barulho matinal do trânsito caótico paulistano... e estou dizendo 20 anos atrás... imaginem hoje!

Há dois dias postei um texto de Rubem Alves - Violinos velhos Tocam Música - e o primeiro parágrafo me fez lembrar um pouco sobre essa surdez e cegueira seletivas. Rubem escreve:

"Jesus era sábio. Conhecia os segredos do coração humano. Psicanalista insuperável. Disse: “O homem bom tira coisas boas do seu tesouro. O homem mau tira coisas más do seu tesouro.“ Ou seja: a gente sempre encontra aquilo que está procurando. (...)"

Nessa época eu participava de um grupo espiritualista às segundas-feiras. Era uma reunião solta e envolvia também conversas descontraídas. Quando comentei sobre as minhas estadias em São Paulo, do barulho e do cinza intenso da paisagem de concreto, meu "guru" da época, amigo Jonathan - o qual agradeço muito até hoje pelos ensinamentos que me proporcionou - disse:

- Experimente abrir a janela e tente ouvir o canto dos pássaros e enxergar o verde, por mais sutil que seja entre os edifícios.

E perguntei a ele brincando:
- Puxa... com essa idade nunca foi pra São Paulo? 
Ele riu, mas insistiu:
- Experimente!
Fui várias vezes depois desse dia para São Paulo e confesso que nunca me lembrei do que ele falou, mas um dia eu acordei e o diálogo que tivemos me veio à cabeça. Sirene do caminhão de resgate, ambulância, ônibus... realmente aquela manhã estava "caprichada"! Abri a janela e pensei "vamos então procurar o verde e tentar ouvir o canto dos pássaros".

A princípio me imaginei um louco tentando ouvir pássaros como no soneto Via Láctea de Olavo Bilac:
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e entender estrelas"
E não é que, no meu "pálido espanto", consegui ouvir pássaros em meio à multidão, ao trânsito e às sirenes? E  ainda poupei trabalho, pois eles estavam cantando e piando numa raquítica, mas vitoriosa "Pau de Ferro" florida com seu tronco protegido por ripas de madeira. O mais  interessante é que depois de localizados, consegui filtrar os sons e imagens que eu não desejava naquele meu cenário.

Um aprendizado que me serve até hoje nos momentos difíceis da vida. Moro em Campos do Jordão e quando cheguei ouvia pássaros mesmo sem querer e via o verde sem precisar buscar. Hoje, depois dez anos morando aqui, muitas vezes me pego ouvindo apenas o som dos caminhões, ônibus e automóveis que passam, misturados ao barulho às vezes ensurdecedor das preocupações e tristezas. É quando eu me lembro do amigo-mestre Jonathan e imediatamente saio no terraço e me integro no mundo seletivo dos pássaros e do verde, me esquecendo de tudo!

Há uma grande diferença entre a cidade de São Paulo e Campos do Jordão, mas a surdez e a cegueira vêm de dentro de nós e nos acompanham em qualquer cidade do Planeta, esteja ela cercada de concreto ou de árvores.


“O homem bom tira coisas boas do seu tesouro.
O homem mau tira coisas más do seu tesouro.“


É uma história que vale também para pessoas! Devemos às vezes parar um pouco e sermos seletivos, ouvindo e vendo apenas o que existe nelas de belo. É uma forma de cultivar o verde e os pássaros da alma.

Abaixo, uma gravação simplezinha do som dos pássaros, hoje, ao nascer do sol em Campos.








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